Nas divisões inferiores da Alemanha, uma cultura do futebol vulnerável ao suborno

Katrin Benhold
Neste pequeno estádio na Baviera, grande parte da arquibancada não está apenas vazia – ela está coberta de mato e musgo. Não há câmeras de televisão. Entre os anunciantes das placas publicitárias está o Delphi, um restaurante grego local. Em jogo para o time visitantes de Ulm: passar do nono para o sexto lugar em uma das três classificações regionais da quarta divisão.

Ou, como reconhece até mesmo seu manager, Markus Losch: “Nada”.

Há duas semanas, Ulm, uma cidade suábia encantadora às margens do Danúbio, era mais conhecida por ter a mais alta torre de igreja do mundo e por ser a cidade natal de Albert Einstein. Agora Ulm, e um punhado de outras cidades alemãs, estão associadas ao maior escândalo de apostas na história do esporte europeu, um golpe que expôs um lado pouco conhecido, e corrupto, do esporte favorito do mundo.

Mas por algumas poucas horas no sábado, nada disso importava. O SSV Ulm derrotou o FC Eintracht Bamberg, 3-1. O Ulm dominou em campo. O time fez uma bela partida e adorou cada minuto dela.

Quem se importava com o fato daqueles 39 torcedores, trajando o uniforme preto e branco do Ulm, terem feito um viagem de 250 quilômetros para Bamberg para uma partida que nem o jornalista esportivo local do “Neu Ulmer Zeitung” se interessou em cobrir?

Por aquelas poucas horas, com a música tocando no alto no vestiário cheio de vapor e com a euforia pós-jogo – todos esqueceram que três dos melhores jogadores do Ulm tinham sido demitidos por suposta manipulação de resultados.

“Os jogadores do Ulm não são subornáveis”, cantavam os 39 torcedores, em autodepreciação. “Pena que vocês não trapacearem hoje”, respondeu um torcedor do Bamberg do outro lado dos dois alambrados de metal que os separavam.

Dos 200 jogos de futebol europeus sob investigação pelos promotores, 32 ocorreram na Alemanha e mais da metade deles – 18 – na quarta divisão, onde os especialistas não estão surpresos pelas máfias de apostas terem florescido.

Nas divisões mais altas, a manipulação é mais difícil e menos tentadora.

O escrutínio das câmeras de televisão significa que uma mão na bola intencional ou pênalti convenientemente perdido dificilmente passariam despercebidos. A infâmia de manipular o resultado de uma partida não vale a pena diante das recompensas dos altos salários, prêmios e participação no dinheiro da TV.

Nas divisões inferiores, uma combinação venenosa de altas expectativas, pouco sucesso e salários baixos torna os jogadores dos clubes das 33 divisões regionais da Alemanha vulneráveis a suborno.

Esses homens atuam na linha divisória entre o futebol profissional e amador, onde os sonhos de grandeza da juventude vivem lado a lado com o cinismo de fim de carreira e com a mediocridade frustrada.

Os atletas jogam longe da atenção do público e frequentemente abaixo da linha de pobreza. Os patrocinadores, imprensa e torcedores são escassos. Vinte e seis dos clubes da liga regional apresentam balancetes no vermelho, segundo a Associação Alemã de Futebol. O déficit médio deles ultrapassa 2 milhões de euros, cerca de US$ 3 milhões.

Os jogadores regionais ganham apenas 150 euros – o salário mínimo mensal básico, excluindo premiações, segundo as diretrizes da federação. Salários de cinco dígitos são muito raros e salários de seis ou sete dígitos dos altos astros são apenas um sonho. Alguns clubes são tão pobres que são forçados a atrair os astros com promessas de empregos com patrocinadores corporativos ou pagamento da milhagem percorrida para participar dos treinos.

“As divisões regionais querem jogar profissionalmente, mas não possuem o dinheiro que as divisões profissionais possuem”, disse Theo Zwanziger, presidente da Associação Alemã de Futebol, que fica em Frankfurt e rege o futebol alemão. “Isso torna os jogadores das divisões inferiores mais suscetíveis.”

Em seu escritório sob a arquibancada do estádio local, o técnico do Ulm, Ralf Becker, colocou de forma mais direta: “Todos somos infratores potenciais”.

“Quando as pessoas ganham 500 euros para jogar futebol, não se pode permitir apostas de milhares de euros e esperar que isso não tenha um impacto”, disse Becker, que pensa que todas as apostas em partidas da quarta divisão deveriam ser proibidas. As apostas acontecem em grande parte em empresas privadas de apostas. O sistema estatal se limita em grande parte aos jogos da primeira divisão.

“Todos eles sofrem as pressões do futebol profissional: o medo de lesões; a disputa semanal por um lugar entre os titulares; os 90 minutos de jogo no fim de semana; o conhecimento de que sua carreira acaba aos 35”, disse Becker, um ex-jogador profissional que teve que parar aos 34 devido a uma lesão no tornozelo.

“Mas os jogadores de Bundesliga ganham pelo menos 10 ou 20 vezes mais.”

Os três jogadores croatas demitidos, Davor Kraljevic, 31 anos, Dinko Radojevic, 31, e Marijo Marinovic, 26, são um exemplo. Eles estão sendo investigados por supostamente terem manipulado quatro partidas na última temporada e duas nesta por vários milhares de euros cada.

Ganhando entre 3 mil e 4 mil euros por mês, eles estavam entre os jogadores mais bem remunerados do clube. Mas como explicou uma autoridade familiarizada com a investigação, a opção deles era entre 350 euros em pagamentos de prêmios tributáveis, em caso de vitória do clube, e cerca de 5 mil euros em dinheiro por partida manipulada.

“O cálculo deles era: ser bem remunerado para perder ou mal remunerado para vencer”, disse a autoridade, que não quis ser identificada porque a investigação está em andamento.

O três jogavam em posições essenciais: zagueiro central, meio-campista e atacante – um eixo direto até o gol. Ou, como algumas pessoas em Ulm dizem atualmente brincando: o eixo do mal.

Marinovic é suspeito de ter colocado propositalmente a mão na bola que resultou em um pênalti para o Kassel, em uma partida que o Ulm perdeu por 3-0 na última temporada. Radojevic, o principal goleador do clube, perdeu um pênalti em uma partida recente contra o Darmstadt. Kraljevic, segundo os investigadores, circulava nas mesmas rodas de Ante Sapina, o líder da máfia de apostas croata envolvido em um escândalo de manipulação de partidas de 2005, que acredita-se que esteja envolvido no escândalo atual.

Muitos jogadores lembram amargamente de um jantar no clube na noite anterior à batida policial nas casas dos jogadores croatas e à apresentação das evidências ao clube.

“Nós estávamos tentando entender porque estávamos perdendo tantas partidas que estávamos vencendo por 1-0 no intervalo”, disse Florian Treske, um jogador do Ulm.

O SSV Ulm, um clube de 163 anos, é de muitas formas um microcosmo do mundo um tanto amargo do futebol alemão, um universo pouco notado de esperanças arruinadas, apuros financeiros, corrupção e sonhos não realizados.

Em 1997, o Ulm iniciou uma longa escalada que resultou no quase impossível: ele subiu da terceira para a segunda divisão e então -por um breve período exuberante- para a Bundesliga. Holger Betz, 31 anos, que era o goleiro do clube na época, lembra da emoção de jogar para 85 mil pessoas.

Mas a queda foi tão espetacular quanto a ascensão. Em 2001, o Ulm estava de volta à terceira divisão e insolvente, virtualmente falido devido à decisão de manter os jogadores caros. Um ex-dirigente do clube está sob investigação por acusações de não pagamento de salários aos jogadores.

Desde então, o clube sobrevive com 1,5 milhão de euros por ano e é uma típica mistura de quarta divisão de promessas não realizadas e antigos astros, além do grande número de jogadores que fica no meio, que não é nenhum dos dois.

Jogadores de 20 anos como Burak Tastan, com ambições de garoto de jogar pela seleção alemã, jogam lado a lado com astros como Heiko Gerber, que passou 10 anos na Bundesliga e, aos 37 anos, está encerrando sua carreira.

Também há pessoas como Betz, que passam virtualmente toda sua carreira aqui. Há estrangeiros medianos que esperam ingressar no mítico futebol alemão, como os croatas demitidos.

Agora que os croatas foram demitidos, nenhum jogador do Ulm ganha mais de 3.650 euros brutos por mês. Os jogadores ganham 150 euros por estarem presentes em uma partida e progressivamente mais em caso de vitória. O salário médio, disse Losch, o manager, é próximo de 1.800 euros e alguns ganham apenas 200 euros. Alguns poucos, como Betz, possuem emprego de meio período.

“Ninguém aqui dirige um Porsche”, disse Becker.

Estacionados fora do estádio durante um treino de sexta-feira estavam um Audi Q7, um pequeno Citroën, um Renault Twingo e duas bicicletas.

Tastan, cujos pais vieram da Turquia e que fala alemão com sotaque da Baviera, dirige o carro do pai. Ele aluga um pequeno flat no quarto andar de um prédio na periferia de Ulm por 390 euros por mês. Ele não disse quanto ganha, mas disse que é o suficiente apenas para sobreviver.

E manipular um jogo por dinheiro?

“Nunca”, ele disse. “Eu não poderia fazer isso com os torcedores.” Alguns jogadores mais velhos têm menos consideração pelos torcedores. Andreas Mayer, 28 anos, já trocou de clube sete vezes. Os torcedores, ele disse, são volúveis. “As pessoas vêm quando você é bem-sucedido”, ele disse.

Mayer já foi insultado pelos torcedores, até mesmo recebeu cusparadas. Nesta temporada, quando o clube voltou de uma partida contra o Stuttgart, um empate de 0-0, vários torcedores bloquearam sentados o estádio, desafiando os jogadores a se explicarem. O time inteiro teve que descer do ônibus e apanhar. “O lado negativo deixa sua marca”, disse Mayer. “Nem tudo é positivo no futebol.”

O futebol não é um esporte milionário como frequentemente é visto, disse Becker. Mas “tudo está concentrado nas divisões superiores”, ele disse. “Lá no topo os estádios estão lotados, enquanto no fundo estamos em dificuldades. Nós só aparecemos na televisão quando há um escândalo.”

Mas apesar de todas as frustrações, muitos aqui não perdem sua paixão pelo esporte. Eles são heróis locais. As crianças locais pedem seus autógrafos. Eles estão, de muitas formas, vivendo seu sonho de infância.

Tastan é um dos que se sentem afortunados por serem remunerados para fazer o que mais gostam. Ele reconheceu que alguns jogadores ganham o mesmo que garçons ou cabeleireiros. “Mas recebemos para jogar futebol o dia todo”, ele disse.

Tradução: George El Khouri Andolfato

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