Nunca a rivalidade entre brasileiros e argentinos esteve tão acesa como na final do campeonato sul-americano de 1946. Foi uma das partidas mais dramáticas da história do futebol.
Buenos Ayres era uma festa naqueles dias úmidos e abafados do verão de 1946. A Segunda Guerra Mundial terminara e, enquanto a Europa contava seus mortos e reconstruía cidades arrasadas, a Argentina desfrutava de momentos de grande prosperidade. E o futebol refletia o quadro geral da nação. Forte, competitivo, rico e cheio de prestigio, poderia sem susto ser colocado entre os melhores do mundo. A geração de Moreno, Pedernera Lostau. Labruna, Perucca, Sastre, Di Stefano, Carrizo e tantos outros ainda hoje é lembrada como a melhor da história do futebol argentino.
Apesar de tudo, os jogadores brasileiros desembarcaram em Buenos Ayres para disputar mais um sul-americano, e não estavam preocupados exatamente com a técnica e a categoria que eles viam nos argentinos. O receio era outro. Três meses antes, num jogo entre as duas seleções realizada no Rio de Janeiro, num lance casual entre Ademir e Batagliero, o zagueiro argentino teve sua perna fraturada. A medida que se aproximava a final do sul-americano de 1946, em Buenos Ayres, a imprensa argentina acusava os brasileiros de violentos, principalmente Zézé Procópio. Os jogadores ouviam nas ruas, nas raras vezes que saiam do estádio do River Plate onde estavam concentrados e passaram a encará-las com seriedade. Oficialmente, a Argentina tinha orgulho se receber os brasileiros e considerava o acidente do Rio de Janeiro como um episódio superado, apesar da derrota de 3×1. Para mostrar sua boa vontade, antes de começar o jogo o capitão Soloman ofereceu uma cesta de flores ao veterano Domingos da Guia, capitão brasileiro. Mesmo assim, antes de inicio da partida, sob os aplausos dos torcedores, Batagliero com a perna gessada, desfilou ao redor do campo numa encenação montada para intimidar os brasileiros.
Quando a bola começou a rolar, entre os anfitriões, Fonda, Strembel e De La Mata, não poupavam as canelas de ninguém. Os visitantes não se intimidavam e Zézé Procópio e Chico, indiferentes aos clamores de muitos torcedores que pediam, em coro, suas cabeças, estavam longe de qualquer disposição de fugir do pau. Batiam também. Futebol que é bom não havia, e Jair da Rosa Pinto não se sentia muito a vontade. Gostava de um jogo mais sereno onde pudesse mostrar toda sua habilidade. O remédio era evitar as provocações, pois o negocio poderia acabar mal. Entretanto, aos 28 minutos do primeiro tempo, uma bola espirada na intermediária sobrou entre Jair e Solomon. Por um instante, Jair hesitou, mas ao perceber que o zagueiro entrava de carrinho para ganhar a jogada de qualquer maneira, decidiu levantar a perna e virar o rosto num gesto de defesa. O choque foi inevitável com a perna de Solomon fraturada pela sola da chuteira de Jair.
Foi o inicio de uma tarde de loucura e desespero. Com Salomon no chão, Fonda partiu para cima de Jair. Chico, de sangue quente, decidiu ajudar o companheiro e segurou Fonda pela camisa. Mas, nesse momento, Strembel o derrubou pelas costas. Dois, três, quatro outros argentinos se juntaram para massacrar Chico que estava sozinho e cercado pelos inimigos. O brasileiro era valente e sabia brigar. De repente, porém, surge uma carga de cavalaria. Chico pôs as duas mãos no rosto, por instinto de defesa, mas não conseguiu evitar que os golpes de sabre dos soldados o atingissem nas costas, nos ombros e nos braços. Sua sorte é que um árbitro careca, forte, grandão e corajoso, agente da Policia Especial do Rio de Janeiro, invadiu o campo e abriu caminho entre os cavalos, os soldados e os jogadores argentinos. Era Mário Vianna. Ele nunca soube como conseguiu carregar o Chico até o vestiários do Brasil.
A tarde do desespero não terminou ali. Aproveitando-se da confusão, umas 500 pessoas pularam para o campo. A policia teve que atirar bombas de gás, mas só a muito custo elas saíram dali. No vestiário brasileiro ninguém queria voltar para do gramado. Entretanto, o chefe do policiamento no estádio procurou Luis Aranha, dirigente da seleção e declarou para quer todos ouvissem – “Não podemos nos responsabilizar pelas reações da torcida se sua equipe não voltar para o jogo imediatamente”. Luis Aranha ensaiou um protesto, mas acabou concordando. Lentamente a seleção voltou para o jogo. Chico não voltou, tinha sido expulso e estava muito machucado. Zizinho também não. Ademir entrou em seu lugar. No primeiro lance Ademir recebeu um soco. Evitando entrar nas divididas, os brasileiros deixou os argentinos marcarem dois gols e se sagrarem campeões sul-americanos de 1946. O titulo conquistado fez a torcida comemorar e esquecer os brasileiros.
Por dez anos, as duas seleções estiveram de relações cortadas. A Argentina não veio para o sul-americano de 1949 nem a Copa do Mundo de 1950. O Brasil somente voltou a Buenos Ayres em 1956
Este jogo foi realizado no dia 10 de fevereiro de 1946 no Estádio Munomental de Nuñez, em Buenos Ayres. O juiz foi Nobel Valentini do Uruguai que expulsou Chico do Brasil e De La Mata da Argentina que venceu por 2×0 com gols de Mendez.
Argentina jogou com Vacca. Salomon (Maranti). Sobrero, Fonda. Strambel (Ongaro), Pescia. De La Mata. Mendez. Pedernera. Labruba e Lostoau. O Brasil com Luiz Borracha. Domingos da Guia e Norival. Zézé Procópio. Danilo e Jayme (Rui). Tesourinha (Lima). Zizinho (Ademir). Heleno. Jair e Chico.
(EsporteIlustrado)
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