Resistir para existir: a trajetória de Jade Soares, 1ª assessora transexual da Semudh

“Sobre o dia da visibilidade trans me sinto dividida”. A frase é de Jade Soares, mulher, transexual, negra, de origem humilde, criada em quilombo de Santa Luzia do Norte, a 23 km da capital. Jade é a primeira transexual a assumir um cargo de assessoria técnica em uma secretaria de estado em Alagoas.

Sua trajetória é desde muito cedo costurada por desafios. Inconformada com o determinismo de uma realidade pobre e cercada de limitações, Jade carrega conquistas que a posicionam como o ponto fora de uma curva marcada por discriminação e violência contra a parcela da qual faz parte.

Ainda muito cedo, aos 11 anos, já compreendia que a imagem que enxergava no espelho não correspondia à sua verdadeira versão. Curiosa e determinada, decidiu que era a hora de criar uma nova identidade para si. “Eu já sabia que eu era LGBT, tanto que procurei outra mulher trans da minha cidade. Falei para ela que eu achava bonito o jeito dela, que não tinha vontade de ficar com menina, tinha vontade de ficar com menino. Que eu queria colocar peito, cabelo, tinha vontade de usar as roupas dela”, revela.

Como muitas outras transexuais, Jade precisou sair de um ambiente fechado e preconceituoso para que desse início a um novo destino, diferente daquele que deixara para trás. Chegou à capital sem nenhuma expectativa profissional e trabalhou durante 11 anos em casas de família como cuidadora e empregada doméstica. Até que em 2003 conheceu a idealizadora da ONG Pró-Vida, Fabíola Silva, lugar onde desenvolveu ainda mais sua vertente política, tão presente em seu discurso.

Jade encontrou no movimento de defesa dos direitos humanos a essência de sua própria existência. Lutar e conquistar espaços são o que a move. Em 2009, criou a Metamorfose, uma ONG dentro do quilombo em que nasceu destinada a educar a população local sobre seus próprios direitos.

O ato ousado trouxe também ameaças e desavenças. “Por ser uma cidade pequena, éramos como um curral eleitoral para os políticos, saber sobre nossos direitos os feriam. Então, eles começaram a me perseguir no município e falavam que a gente estava ali para incentivar a prática sexual em crianças e que queríamos incentivar as pessoas a serem gays”, relembra.

Ao enfrentar as autoridades, Jade dava o primeiro passo para a transformação completa da realidade de seu próprio povo. Depois de muitas reuniões e debates, em 2013, Santa Luzia do Norte se tornava o primeiro município alagoano a permitir que pessoas transexuais usassem seus nomes sociais. “Com muita luta nós conseguimos instalar o primeiro decreto social do Estado que garantia a utilização do nome social na minha cidade”, comemora.

Reconhecimento

O feito levou a transexual para palestrar em vários lugares do Brasil, incluindo uma visita ao gabinete presidencial e nove idas à Organização das Nações Unidas (ONU) para que fossem catalogados todos os frutos da Metamorfose. “Eu levava para eles as experiências exitosas que tivemos dentro de nossa comunidade quilombola, que antes de nos instalarmos lá era muito sexista, machista e preconceituosa com a comunidade LGBT”, explica.

Jade se mostra bastante orgulhosa da transformação que conseguiu realizar em sua comunidade. “Hoje o cenário lá é diferente. Depois de uma década, conseguimos o espaço que queríamos: ter dentro do quilombo uma instituição para nos reunirmos. As travestis já usam o nome social pela cidade, já são chamadas como elas querem. Então foi um avanço, foi uma luta difícil, mas necessária”, relata.

De lá para cá, travestis e transexuais de todo o País conquistaram o direito de usar o nome social e o reconhecimento da identidade de gênero no âmbito da administração pública com o decreto presidencial de abril de 2016. Mesmo ano em que Jade se tornava Secretária Geral da Rede Nacional de Pessoas Trans (Redetrans).

Um dos momentos mais marcantes desde que iniciou sua trajetória pessoal vem em tom agridoce para ela. “Perdi minha mãe em 2013, então ela não pode ver eu me formando em Enfermagem, nem quando eu ganhei o Prêmio Selma Bandeira”, relata emocionada. A premiação mencionada aconteceu em março de 2019 e prestou homenagem às personalidades femininas de destaque no Estado. Naquele ano, Jade se tornou a primeira mulher transexual a sair premiada desde a primeira edição do evento em 2010.

“No dia só tinha juízas, desembargadoras, empresárias, deputadas, secretarias de estado. Então, isso foi como um ponta pé para que a minha luta tivesse mais visibilidade dentro do movimento das próprias mulheres. Foi muito emocionante quando ligaram. Prefeitos de municípios trouxeram suas comitivas, a comunidade quilombola veio em peso. No dia eram só 10 convites, mas aí eles abriram pra mim mais de 50 (convites) porque foi chegando gente e eles deixaram entrar”, comemora.

Visibilidade

Sobre o dia 29 de janeiro, data que marca a luta por visibilidade, inclusão e acesso aos direitos de cidadania por pessoas transexuais, Jade ainda demonstra cautela ao falar das conquistas dessa população. “Estamos muito felizes por ser o primeiro janeiro que nós vamos comemorar com o decreto assinado pelo governador Renan Filho, de agosto do ano passado, que permite o uso do nome social em todo o Estado, mas nós ainda temos algumas angústias que é a falta de empregabilidade e o desrespeito ao uso do nome social que não é adotado em muitos locais”, afirma.

Sem legislação específica que garanta vagas no mercado de trabalho, transexuais e travestis dependem de iniciativas individuais do empresariado. “Mesmo não tendo estudo nós sabemos que o mercado é muito amplo e nós temos diversas formas de empregar uma pessoa trans como camareira, serviços gerais, auxiliar de cozinha, etc.”, explica.

O que Jade externa é a preocupação constante com o pouco reconhecimento das identidades trans por parte da sociedade civil do estado, um processo lento que toca em questões culturais e de preconceito. Um trabalho lento e gradual, pois trata-se de mudanças culturais, de preconceito.

Ainda no início do mês de comemoração à visibilidade trans, o vídeo da travesti Lanna Hellen, protestando após ter sido impedida de utilizar o banheiro feminino em espaço público, viralizou nas redes sociais. O caso tomou repercussão nacional e a trans foi acolhida pela Semudh que está imbuída de atuar na defesa.

Casos como o de Lanna são recorrentes em vários lugares do Brasil. O diferencial dele é que uma travesti teve a coragem de se expressar para buscar e chamar a atenção sobre seus direitos. Isso gerou outras violações, como danos morais. Como nem sempre as pessoas têm uma reação, os casos ficam subnotificados, o que atrapalha a construção de uma estatística. A Semudh vem desenvolvendo mecanismos que permitam ter acesso a esses dados para qualificar a sua atuação a cada intervenção.

Futuro 

Jade está casada há dois anos com um homem cis (refere-se ao alinhamento entre a expressão de gênero e o órgão sexual de nascimento) hétero (a pessoa que se atrai sexualmente pelo sexo oposto ao seu), Hélio, de 27 anos, e está perto de concluir a faculdade de Gestão Pública. Ela revela que seu maior sonho é fundar um centro de referência LGBTQI+ nos moldes do Centro de Referência de Atendimento à Mulher em Situação de Violência (CEAM). “Seria o primeiro contato que os LGBT’s teriam depois de uma violação de direitos humanos e daria celeridade à punição dos agressores com todo aparato jurídico, de cuidado à saúde, assistencialismo e direitos humanos”, explica.

Além desta empreitada, ela quer voltar para o quilombo de onde saiu. “Eu sempre tive o apoio da minha mãe, da minha avó, dos meus tios. Quando eu vejo o pessoal do quilombo confiando tanto em mim e tão orgulhoso eu ganho força e impulso para continuar na luta. É por isso que pretendo voltar a morar lá. Eu preciso dar à minha comunidade quilombola e LGBT a garantia do que nós temos e a possibilidade de ter muitos outros direitos”, conclui.

Selo de reconhecimento para empresas que empregarem pessoas trans

A Secretaria da Mulher e dos Direitos Humanos (Semudh), dentro das ações que já desenvolve, vai intensificar este ano o contato com empresários do setor comercial e hoteleiro. A secretária Maria Silva acredita que o caminho passa pela educação, pela disseminação de informação, e pela capacitação profissional para que pessoas trans possam ter oportunidade de trabalho. “Vamos realizar visitas e encontros com empresários para sensibilizá-los sobre os direitos da comunidade LGBT, para que sejam respeitados”, disse.

A secretária informa que há um projeto em andamento, em parceria com o Ministério Público do Trabalho, para de um lado capacitar pessoas travestis e transexuais para o mercado de trabalho. De outro, para buscar mecanismo de incentivo a empresas para colocarem pessoas trans e travestis em seus quadros de colaboradores. “Esse projeto inclui a criação de um selo para reconhecer empresas que admitem em seus quadros a diversidade LGBT”, adianta Maria, lembrando que este selo vai ser lançado este ano.

Como acessar os serviços da Semudh

A Semudh é uma porta permanentemente aberta para o atendimento das violações sofridas pela comunidade LGBT, pelas mulheres em situação de violência, pelas pessoas com deficiência e qualquer caso que afete os direitos humanos de cada cidadão. Em todos eles, assim como para pessoas trans, a Secretaria ouve a vítima e encaminha para os órgãos responsáveis pela oferta da política que possa solucionar a demanda. A Secretaria tem atendimento ao público presencialmente na sede, no Centro de Maceió, ou através dos telefones (82) 3315-3792 ou (82) 9 8879-7571.

 

Texto de Eduardo Lira

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