Reserva da Bica vira ponto de observação de tartarugas marinhas em Japaratinga

O mais novo pedaço do turismo sustentável na Costa dos Corais, no Litoral Norte de Alagoas, ganhou um atrativo especial: a observação de tartarugas marinhas. As cascudas são frequentemente avistadas a partir da Reserva da Bica, recanto que preserva cinco hectares de Mata Atlântica em frente à enseada da praia de Barreiras do Boqueirão, na cidade de Japaratinga, a 115 km de Maceió.

Após percorrer uma trilha leve – com duração entre sete e dez minutos –, chega-se ao Mirante das Tartarugas. Além de enquadrar deslumbrante cenário tropical a 40 metros de altitude, o visitante pode ter a sorte de flagrar animais em busca de alimento nos arrecifes encravados à beira-mar logo abaixo da reserva.

“A gente não promete que a pessoa vai ver tartaruga. Eu não fiz contrato. Elas são voluntárias”, brinca a bióloga Flávia Moura, proprietária da área transformada em Reserva do Patrimônio Privado Ambiental (RPPN) e aberta para visitação em dezembro do ano passado. “Depois que visualizamos pela primeira vez, passamos a prestar mais atenção e então começamos a notar com muita frequência. Há dias de avistarmos cinco ou seis delas”, diz a ambientalista, que abre o espaço das quintas às segundas-feiras, com entrada permitida até as 16h30 e custo de R$ 10 por pessoa (crianças menores de 12 anos não pagam).

Pesquisas realizadas pelo Laboratório de Biologia Marinha e Conservação (Lamarc), da Universidade Federal de Alagoas (Ufal), na Área de Proteção Ambiental Costa dos Corais (APACC) confirmam que a região é ponto de concentração dos indivíduos quelônios. “Ali, provavelmente, são tartarugas-verdes. É a mais abundante da APA, de toda a parte costeira e associada com o território mais raso. Ali é uma área de alimentação”, aponta o coordenador do Lamarc, Robson Santos, cuja trajetória acadêmica – da graduação ao pós-doutorado – acumula 15 anos de estudos sobre as cinco espécies de tartarugas marinhas encontradas nos mares do Brasil.

Quatro delas costumam navegar pelo litoral alagoano. Além da tartaruga-verde, a tartaruga-de-pente, a tartaruga-cabeçuda e a tartaruga-oliva transitam por aqui. “A tartaruga-de-couro tem registros mais oceânicos. Não é comum encontrá-la nas regiões costeiras”, explica Robson, que também é professor do curso de Biologia na Ufal.

No Mirante das Tartarugas, o encontro à distância tem mais chances de acontecer durante a maré cheia, principalmente, na parte da tarde. “É quando a água cobre mais os arrecifes, e elas têm mais acesso às áreas de alimentação. Como são animais pulmonares, precisam subir para respirar”, esclarece o estudioso.

O levantamento realizado pelo pesquisador e seus alunos ainda não consegue precisar a quantidade de tartarugas embaladas pelas correntes que atravessam as divisas marítimas alagoanas, seja para se alimentar ou desovar na faixa de areia – hábito predominante da tartaruga-de-pente.

“Fizemos uma série de trabalhos que mostra isso, com voos com drones pela região para tentar quantificar os bichos. Ainda não é possível dizer quantos têm, mas sim onde há mais ou menos. Ali, em Japaratinga, na falésia do Boqueirão, há uma frequência razoável de bichos se alimentando. Na verdade, há em toda a costa, mas com pontos de concentração”, esclarece.

Única herbívora das cinco espécies, a tartaruga-verde tem algo mais importante a oferecer além da atração exercida sobre turistas e amantes da natureza a partir de aparições em praias paradisíacas: o réptil contribui de modo essencial com a manutenção do ecossistema na cadeia de arrecifes da Costa dos Corais.

“Ela come alga e grama marinha. O consumo ajuda no equilíbrio do sistema porque as algas competem com o coral por espaço. Por isso, as tartarugas marinhas são peças fundamentais para um recife mais saudável neste ambiente”, defende Robson Santos.

Com ciclo de vida complexo e mudanças de hábito ao longo de uma existência que pode alcançar os 80 anos de idade, o bicho nadador até se alimenta em grupo, mas, em geral, não apresenta comportamento social.

No caso da tartaruga-verde, outro fato curioso é que a população avistada em Alagoas pode ser natural de países de diversos continentes. “Fizemos um estudo genético na APA como um todo. Tem tartaruga que nasceu na África, nos EUA e no Caribe e que veio se alimentar aqui”, revela o pesquisador.

Após passar em média cinco anos na chamada fase oceânica, a espécie cresce e, quando o casco mede por volta de 30 centímetros, inicia a travessia para encontrar alimento em zonas costeiras. Com a chegada do período reprodutivo – que pode ocorrer até os 30 anos ou mais de idade –, o animal retorna para o lugar de nascimento.

Graças a programas e projetos de pesquisa desenvolvidos na APA Costa dos Corais por diversas entidades e instituições – da Ufal ao Instituto do Meio Ambiente de Alagoas (IMA), do Instituto Biota de Conservação ao Instituto Chico Mendes de Preservação da Biodiversidade (ICMBio), entre outras –, a população de tartarugas foi “levemente recuperada” ao longo dos últimos anos, embora continue na lista vermelha de espécies ameaçadas de extinção.

Se no passado a principal ameaça era a caça para comercialização do casco e o consumo de ovos, hoje o maior risco é pesca incidental. “É quando o bicho se prende na rede que os pescadores armam para capturar peixes. Ela não é o alvo da pesca, mas acaba se enganchando e não consegue subir para respirar”, descreve o coordenador do Laboratório de Biologia Marinha e Conservação da Ufal, que ao longo de um ano de monitoramento registrou mais de 650 tartarugas mortas na extensão da Costa dos Corais.

Outra inimiga é a poluição oceânica a partir do consumo de objetos e fragmentos plásticos. Apesar de a pesca incidental ser atualmente mais hostil, o risco oferecido pelos resíduos se prolonga no tempo. “O plástico vai ficar por muitos e muitos anos, já no caso da pesca, temos como dialogar. Chegamos a conversar com os pescadores e há muitos relatos deles afirmando que não têm problema com as tartarugas. Elas não são o alvo”, confirma Robson Santos.

Felizmente, as ações de conscientização ambiental começam a surtir efeito. De volta ao Mirante das Tartarugas, na Reserva da Bica, Flávia Moura relata o cuidado dos homens do mar quando notam a presença da réptil nadadora nas áreas de arrasto. “Quando há muitas tartarugas, os pescadores mudam as redes de local”, reporta. Um alento bem-vindo como a brisa que sopra suave no topo do refúgio.

Ainda assim, e mesmo indiretamente, o ser humano continua como o predador mais nocivo – mais até do que o maior inimigo natural, o tubarão, que atualmente também navega rumo à ameaça de extinção. Portanto, caso você se depare com algum exemplar, a orientação dos especialistas é: “Apenas observe sem tentar interagir. Mantenha distância, respeite o animal e aprecie o seu comportamento”, adverte o pesquisador da Ufal. “É um bicho que se assusta fácil, vai embora rápido. E se você encontrar uma tartaruga marinha desovando na praia, aí, sim, que deve manter bastante distância para não prejudicar o momento reprodutivo”, frisa Robson.

 

A possibilidade de observar as subidas e descidas do animal de casco é apenas um dos charmes da Reserva da Bica. A área se mostra um sítio naturalmente convidativo para quem deseja incrementar a temporada na cidade de Japaratinga. Os cinco hectares oficialmente protegidos estão inseridos em 18 hectares da propriedade privada formada por um variado conjunto de espécies. A vegetação do terreno é classificada como Mata Atlântica de Tabuleiro. Tem mangabeira, murici, ouricuri, cajueiro brabo e muito mais.

A trilha não é exaustiva. “A gente tem recebido pessoas idosas. Se for uma pessoa que caminhe bem, que não apresente dificuldade de locomoção, ela faz a trilha tranquilamente”, garante Flávia Moura, que administra o terreno.

Além de turistas de Alagoas e do Brasil, o lugar tem recebido visitantes locais, que residem na própria cidade. “Tem ido muita gente da região para conhecer. E muita gente se surpreende por não saber que há um local com uma vista tão bonita”, afirma. “Os moradores do povoado estão orgulhosos da reserva, até porque eles sabem que a Bica da Pedra agora está mais preservada”. A bica mencionada por Flávia Moura é um antigo manancial, historicamente acessível à população local, que jorra constantemente água de nascente que brota da reserva.

Moradores de Japaratinga, Érica Carvalho e Djalma Lindoso visitavam a Reserva da Bica pela primeira vez num aprazível fim de tarde de sábado. “É muito bacana. Ficou perfeito isso aqui. Além de tudo, evita a especulação imobiliária nesta parte alta”, avaliou Djalma Lindoso, tabelião no município. “É muito importante essa preservação, inclusive com novos plantios. E já para incrementar a visitação”, sugeriu a companheira a seu lado.

A ampliação na oferta de produtos está nos planos do empreendimento ecoambiental. Os planos incluem o cultivo de abelha nativa em apiário; a criação de um viveiro para criação de plantas nativas – tanto para recuperação de áreas quanto para incentivar e comercializar itens de jardinagem ou paisagismo –; um viveiro com ervas medicinais e um projeto agroflorestal para implantação de horta com foco em alimentação saudável para crianças da rede pública escolar. “Vamos tentar trazer as mulheres da comunidade para valorizar o conhecimento local, unindo o saber tradicional com o acadêmico”, planeja Flávia Moura.

 

No tocante ao aspecto natural, a cidade que abriga a reserva é um tesouro relativamente “escondido” na cada vez mais badalada extensão litorânea da Costa dos Corais. O trecho entre os municípios de Porto de Pedras e Maragogi é tudo aquilo que você imagina – com o perdão do clichê inevitável – de um paraíso tropical, com direito a praias pouco movimentadas, águas mornas, mansas e azuladas e serviços que acrescentam uma dose extra de conforto à experiência.

Com opções de hospedagem que variam de pequenos hotéis de aparência aconchegante a pousadas cheias de charme à beira da via costeira, Japaratinga – que em tupi-guarani significa “arco branco” – entrega ancestralidade natural numa atmosfera irresistivelmente relaxante.

Na maré baixa, o mar recua e garante uma boa caminhada até a lâmina d’água ultrapassar a altura do joelho. Ao virar para a costa, o paredão forrado pelo verde da vegetação e dos coqueirais completa um cenário arrebatador. Entre o calor solar e a refrescância oceânica, os sons do silêncio ecoam a velha e sempre agradável sinfonia da natureza.

Ao perceber que as poucas casas à beira-mar não possuem muros, grades ou cercas elétricas, não duvide ao achar que voltou no tempo. Para completar, o território com pouco mais de 15 mil habitantes acumula importante repertório histórico-cultural. No limite com Barreiras do Boqueirão, o rio Manguaba deságua com porte elegante. Leito para travessias que remetem ao Brasil colonial e à invasão holandesa. Dá até para acrescentar uma pequena aventura ao cruzar o rio na balsa para o município de Porto de Pedras e conhecer outros locais de interesse do litoral norte alagoano.

Boa estadia.

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